Monday, December 04, 2006

o dia do juízo final


«o que é que me fascina, que me deixa encantado nas fotografias que amo? creio que se trata, simplesmente, do seguinte: a fotografia é para mim, de certo modo, o dia do Juízo Universal, representa o mundo tal como aparece no último dia, no Dia da Cólera. não é, certamente, uma questão de tema, não quero dizer que as fotografias que amo são aquelas que representam qualquer coisa de grave, de sério ou até de trágico. não, a fotografia pode mostrar um rosto, um objecto, um acontecimento qualquer. [...] "aquilo que aparece" – o rosto de duas mulheres que passeiam de bicicleta na Escócia, a vitrina de uma loja em Paris – é convocado, é citado a comparecer no Dia do Juízo Final.
que isto é verdade desde o início da história da fotografia é demonstrado com absoluta clareza por este exemplo. conhecem certamente o célebre daguerreótipo do Boulevard du Temple que é considerado a primeira fotografia onde aparece uma figura humana. a chapa de prata representa o Boulevard du Temple fotografado por Daguerre da janela do seu estúdio, numa hora de ponta. o boulevard devia estar apinhado de gente e de viaturas e, todavia, dado que os aparelhos da época exigiam um tempo de exposição demasiado longo, de toda aquela massa em movimento não se vê absolutamente nada. nada, para além de uma pequena figura negra no rodapé, em baixo, à esquerda da fotografia. trata-se de um homem que estava a engraxar os sapatos e que, por isso, permaneceu imóvel durante bastante tempo, com a perna ligeiramente soerguida para apoiar o pé no banquinho do engraxador.
não conseguiria fantasiar uma imagem mais adequada do Juízo Universal. a multidão dos humanos – a humanidade inteira, aliás – está presente mas não se vê, porque o juízo tem a ver com uma única pessoa, uma única vida: aquela exactamente, e não outra. e de que modo foi aquela vida apanhada, captada, imortalizada pelo anjo do Último Dia – que é também o anjo da fotografia? no gesto mais banal e mais vulgar, no gesto de engraxar os sapatos. no instante supremo, o homem, qualquer homem, fica registado para sempre, no seu gesto mais ínfimo e quotidiano. e, todavia, graças à objectiva fotográfica, aquele gesto fica doravante carregado com o peso de toda uma vida, aquela posição irrelevante, talvez desajeitada, resume e contrai em si o sentido de toda uma existência. [...]
é nesta natureza escatológica do gesto que o fotógrafo exímio sabe captar. sem, contudo, retirar nada à historicidade e à singularidade do acontecimento fotografado. [...] também para mim a exigência que nos interpela das fotografias não tem nada de estético. é mais uma exigência de redenção. a imagem fotográfica é sempre mais do que uma imagem; é o lugar de uma separação, de um dilaceramento sublime entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a recordação e a esperança.»

e continua.
in profanações, giorgio agamben*
livros cotovia, setembro 2006
* obrigada madi.

1 comment:

Unknown said...

Por momentos assustei-me, pensei que seriam novamente as testemunhas de Jeová a anunciarem o dia do Juízo Final.

Acautelem-se porque o mundo pertencerá aos justos e puros.