Tuesday, August 16, 2005

o senhor que gostava de ter vivido em Antioquia

Era uma vez um senhor que gostava de ter vivido em Antioquia. Não sei o nome dele mas sei que gostava de ter vivido em Antioquia. Vi-o apenas uma vez e ele disse-me: “Gostava de ter vivido em Antioquia.” Perguntei-lhe porquê. Respondeu-me com um apontar de dedo em direcção ao lado esquerdo do meu peito. Não lhe fiz mais perguntas. Baixei a cabeça, meio com vergonha, e vi que pisávamos um mapa-mundo agigantado. O meu pé direito descalço sobre o Egipto e a ponta do meu pé esquerdo mergulhada no Mediterrâneo. O senhor que gostava de ter vivido em Antioquia estava feito ilha no meio do Atlântico. Subi o meu olhar lentamente, vi os seus pés submersos, os seus calções de marinheiro e ainda apanhei o movimento da sua mão de regresso ao bolso. Voltou a dizer: “Eu gostava de ter vivido em Antioquia.” Enquanto eu baloiçava o meu pé esquerdo de um lado para o outro e chapinhava o norte de África com as águas turvas do mar dos outros, o senhor que gostava de ter vivido em Antioquia tirava de um dos bolsos um papel. Quis imediatamente perguntar-lhe o que era aquilo, mas contive-me. Vi-o dobrar infinitas vezes o pedaço de papel. Entretanto o Atlântico subia-lhe já até aos joelhos enquanto das mãos lhe nascia um barco de papel. E de repente, uma súbita vontade de correr. Sacudi a água do meu pé e saltei de continente em continente, continuamente. Não sei quantas voltas dei ao mundo. Sei que já estava tonta quando parei. O senhor que gostava de ter vivido em Antioquia continuava feito ilha (já submerso até à cintura), mas notei que me seguia, de sorriso pasmado, dando voltas sobre si próprio. Estava ofegante e por isso sentei-me, sem saber em que canto do mundo me instalava. Ao senhor que gostava de ter vivido em Antioquia brilharam-lhe os olhos. Disse: “Eu gostava de ter vivido em Antioquia, aí onde estás sentada.” Não lhe ouvi mais a voz. Do outro bolso tirou um marinheiro pequenino que era ele e uma boneca pequenina que era eu. Colocou-os aos dois no barquinho de papel e lançou-os ao mar enquanto se afundava lentamente.

5 comments:

Anonymous said...

Vim reler, gostei ainda mais.

joão martinho said...

damn. gostava de ter escrito isso. muito bom.

plim said...

clap clap :)

Anonymous said...

Nos teus contos nunca há lugar para a tua esposa? Que triste...

Anonymous said...

Espero que não tenhas ficado zangada por desvendar o teu segredo... claro devia pôr'esposa' entre aspas, porque ainda não há casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Acho que tens de assumir isso, para que a as pessoas comecem a respeitar 'a diferença'!